sexta-feira, 10 de setembro de 2010

O desconsolo da perda

"Só superamos a tristeza quando entendemos que perder não é sinonimo de não ter. Que quem morreu já não está no mundo, mas pode existir em nós." 
Betty Milan

   Por que Dom Quixote de la Mancha é um dos romances mais lidos do mundo? Possivelmente porque o herói só se deixa governar pela fantasia. Nós nos identificamos com o personagem porque ele não quer saber da realidade. Como os personagens de Gabriel García Márquez não querem. Desconhecem inteiramente o limite entre o imaginário e o real.
   Quem leu Cem Anos de Solidão não se esquece de José Arcadio Buendía, "cuja desatada imaginação ia sempre mais longe que o engenho da natureza e até mesmo além do milagre e da magia". Ele acreditava que era possível desentranhar ouro da terra com um lingote magnético. O leitor também deve se lembrar da mulher de Buendía, Úrsula, que depois da morte do marido continuou a encontrá-lo no castanheiro onde ele passou amarrado os últimos anos da sua vida. Úrsula ia ao jardim lamentar a sorte dos seu descendentes, chorar no ombro do marido e se consolar. No povoado dos Buenía os morto morrem sem morrer. Por isso, o romance arrebata e, mais que isso, consola.
   O nosso maior desconsolo é a perda do ser amado. Só superamos a tristeza quando entendemos que perder não é sinonimo e não ter. Que quem morreu já não está no mundo, mas pode existir em nós. Fazer o luto é entender que  a morte não anula a existência e que, sem estar, o morto ainda está. Isso requer tempo. Tanto mais tempo quanto menos ritualizada é a despedida. Nas sociedades em que existe o culto ao ancestral, a morte não deixa quem perde inteiramente desprotegido como na nossa sociedade. Entre nós, evita-se falar da morte e não se tem tempo para a tristeza, o que nos expõe mais ainda aos efeitos negativos dela. Nada é pior do que a tristeza recalcada, de ação sorrateira e consequências imprevisíveis. Quem não chora o seu morto e não é consolado pelos vivos fica sozinho com a perda. Num certo sentido, é marginalizado. Por outro lado, quem não tem tempo para o sofrimento alheio não pode ter relações de amor ou de amizade. E, assim, isola-se também.
   Os personagens de romance encontram soluções mágicas para os seus dramas. Já nós somos obrigados a aceitar a realidade. Mas nada nos impede de aprender com os personagens a usar a nossa imaginação para viver melhor. No caso do luto, isso significa rememorar: o encontro, a solidariedade, o  tempo feliz vivido na companhia do outro. Rememorar em vez de lamentar a falta. Só chora continuamente a perda do amado ou do amigo quem não acredita na própria morte. Ou desacredita o tempo, porque se ilude pensando que a vida não passa.

Texto de Betty Milan, psicanalista e escritora que assina a coluna Consultório sentimental da Revista Veja.
   








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